Isso é um poema ou uma navalha?
Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema. Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”. Preste só atenção em Drummond .
“Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira”.
Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia mais.
Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.
Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra; re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.
Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.
O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os poemas navalha de Artur Gomes certamente não terão piedade de você.
Aristides Arthur Soffiati
Campos, agosto de 1987
*
I
O DIA EM QUE MEU CAVALO RESOLVEU PINTAR AS CORES DA BANDEIRA
a pá/lavra
arma poesia
terra
de santa cruz
ao batizarem-te
deram-te o nome:
puta
posto que a tua profissão
é abrir-te em camas
dar-te em ferro
ouro
prata
rios peixes minas mata
deixar que os abutres
devorem-te na carne
o derradeiro verme
in(confidência
mineira)
sal gado mar de fezes
batendo nas muralhas
do me sangue confidente
quem botou o branco
na bandeira de alfenas
só pode ser canallha
na certa se esqueceu
das orações dos penitentes
e da corda que estraçalha
com os culhões de tiradentes
retórica
salve lindo pendão que balança
entre as pernas
abertas da paz
sua nobre sifilítica
herança
dos rendez-vous
de impérios atrás
eco lógica
fosse
o brasil
mulher
das amazonas
caminhasse
passo a passo
disputasse
mano a mano
guardasse
a fauna e a flora
da
fome dos tropicanos
ouvisse
o lamento dos peixes
jandaias
araras ciganos
nossos indígenas africanos
não
estaríamos assim condicionados
aos
restos do sub-humano
terceiro
mundo
sonho rola no parque
sangue ralo no tanque
nada a ver com tipo dark
muito menos com punk
meu vício letal é baiafro
com ódio mortal de yanque
sub/VERSÃO
só desfraldando
a bandeira tropicalha
é
que a gente avacalha
com as chaves dos mistérios
dessa terra tão servil
tirania sacanagem safadeza
tudo rima uma beleza
com a pátria/mãe que nus pariu
pátria
a(r)mada
só me queira assim caçado
mestiço vadio latino
leão feroz cão danada
perturbando o seu destino
e só me queira encapetado
profanando àqueles hinos
malando moleque safado
depravando os seus meninos
só me queria enfeitiçado
veloz macio felino
em pelo nu depravado
em sua cama sol a pino
e só me queira desalmado
cão algoz e assassino
duplamente descarado
quando escrevo e não assino
relatório
I
na sala ficaram cacos de pratos
espalhados pelo chão pedaços do corpo retidos entre o corredor
após o interrogatório um cheiro de pólvora e mijo misturados a dois ou três
dias sem banho depois de feito sexo
só o fogo da verdade exalando odor e raiva quando em verde conspiravam contra nós
em são cristóvão o gasômetro vomitava um gás venoso nos pulmões
já cancerados nos quartéis da cavalaria
II
eu me lembro
o sentimento era náuseas nojo asco
quando as botas do carrasco
bateram nos meus ombros com os cascos
jamais me esqueci o nome do bandido escondido atrás dos tanques
e
se chamavam
dragões
da independência
e a gente ali na inocência
comendo estrumes
engolindo em seco as feridas provocadas por esporas
aguentando o coice o cuspe
e
a própria ira
dos animais de fardas
batendo patas sobre nós
III
com a carne em postas sobre a mesa
o couro cru o coração em desespero
o sangue fluindo pelos poros pelos pelos
eu faço aqui
meditações sobre o presente
re cria ando
meu futuro
tentando só/erguer
as condições pra ser humano
visto que tornou-se urbano
e re par tiu
se
em mil pedaços
visto que do sobre-humano
restou cabeça pés e braços
pós:
ANT:PÓS
enquanto nós poetas
tentamos mostrar
a burguesia lá
do
alto
qual de nós
é
mais concreto
os profetas do planalto
vão fudendo o povo inteiro
com um pau
bem grosso e reto
- e a poesia?
continua não passando
de um simples objeto
art pop
macunaíma
ilumina o lobisomem
na selva de new York
o rato roeu ea roupa
do gênio da art pop
nosso samba popular
não precisa ser estar
cantando rock
geleia
geral
a coisa por aqui
não mudou nada
embora sejam outras
siglas no emblema
espada continua a ser espada
poema continua a ser poema
pessoa
não tenho pretensões
de ser moderno
nem escrevo poesia
pensando em ser eterno
veja bem na minha língua
as labaredas do inferno
e só use o meu poema
com a força de quem xinga
II
rente a pele
contra o muro
eu te grafito no escuro
quero um poema que revele poesia em sua pele
genital
pasto no cosmo
a soja secular de Jardinópolis
onde os discos-voadores
sobrevoam meu nariz
na cara das metrópólis
no centro ao sul
os cemitérios
possuem mais mistérios
que a nossa vã filosofia
tem um animal de vagina espacial
na poesia
&
um grande
pênis roxo
milenar
feito
aspiral em círculo
preparando imenso orgasmo
pra festejar o fim do século
BR – 101
ah! meu amor
não te esqueci
ainda procriando no meu corpo
os micróbios do teu sangue
enlouqueci
overdose
nu vermelho
retesar as cores
e os músculos
com os dedos agarrados no pincel
se faltar carne
pra roçar os óvulos
a gente jorra tinta no papel
magia
quando meto pés
em tuas matas
selvagem índio
pássaro animal
devasto céus sem ter limites
com poesia sobrenatural
tropicalirismo
girassóis pousando
nu teu corpo: festa
beija-flor seresta
poesia fosse
esse sol que emana
do teu foto farto
lambuzando a uva
de saliva doce
tropicalha
vendo a lua leviana
no império das bananas
papagaios periquitos
graviola
a fruta eu chupo morena
semente eu planto cigana
na selva pernambucana
nossa língua deita e rola
poderia abri teu corpo
com meus dentes
rasgar panos e sedas
com as unhas
arreganhar as tuas fendas
desatar todos os nós
da tua cama
arrancar os cobertores
rasgando as rendas dos lençóis
perpetuar a ferro e fogo
minhas marcas no teu útero
meus desejos imorais
mal/dizendo a hora soberana
com a força sobrehumana dos mortais
quando vens me oferecer migalha e fruto
como quem dá de comer aos animais
alucinações
(in)terpoéticas
o que é que mora
em tua boca bia?
um deus um anjo
ou muitos dentes claros
como os olhos do diabo
e uma estrela como guia?
o que é que arde
em tua boca bia?
azeite sal pimenta e alho
résteas de cebola
carne krua do caralho
um cheiro azedo de cozinha
tua boca é como a minha?
o que é que pulsa
em tua boca bia?
mar de eternas ondas
que covardes não navegam
rios de águas sujas
onde os peixes se
apagam?
ou um fogo cada vez mais dante
como este em minha boca
de poeta/delirante
nesta noite cada vez mais dia
em que acendo os meus
infernos
em tua boca bia?
lunática
um gato noturno
atira pedra nas estrelas
palavras e mais palavras
na carne da princesa
onde o papel não bate
onde o pincel não toca
o gato noturno lambe a barriga
bem perto da virilha
e trepa
no muro mais próximo
tentando alcançar o outro lado das rua
em seu instante letal
de desespero e solidão
froydiana
azul são os teus olhos
a cor dos pelos não conheço
teus seios ainda não toquei
dracena – é uma terra roxa
nave extra/terrena
que humanos não decifraram
pequena vagina/virgem
onde os dedos ainda não entraram
e os cachos de uvas
apodrecem entre teus dentes
com um cheiro de leite ardente
esguichando na distância
alguma poesia
não bastaria a poesia deste
bonde
que despenca lua nos meus cílios
num trapézio de pingentes onde a lapa
carregada de pivetes nos seus arcos
ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.
não bastaria a poesia cristalina
se rasgando o corpo estão muitas meninas
tentando a sorte em cada porta de metrô
e nós poetas desvendando palavrinhas
vamos dançando uma vertigem
no tal circo voador.
não bastaria todo riso pelas praças
nem o amor que os pombos tecem pelos milhos
com os pardais despedaçando nas vidraças
e as mulheres cuidando dos seus filhos.
não bastaria delirar Copacabana
e esta coisa de sal que não me engana
a lua na carne navalhando um charme gay
e um cheiro de fêmea no ar devorador
aparentando realismo hipermoderno
num corpo de anjo que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno
como provar do amor no posto seis
numa cósmica e profana poesia
entre as pedras e o mar do Arpoador
mistura de feitiço e fantasia
em altas ondas de mistérios que são vossos
não bastaria toda poesia
que eu trago em minha alma um tanto
porca,
este postal com uma imagem meio
Lorca:
um bondinho aterrissando lá na Urca
e esta cidade deitando água em meus destroços
pois se o cristo redentor deixasse a pedra
na certa nunca mais rezaria padre-nossos
e na certa só faria poesia com os meus
ossos.
Da Carne Da Palavra - por Tanussi Cardoso
Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgensFulinaímicas, seu mais novo livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas, entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.
Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o autor semeia as raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que desabrocharam como furacão em nossa arte, principalmente vindas da canção popular, com sua palavra cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do Concretismo, do poema-postal, da poesia visual, do cinema e, mesmo, dos quadrinhos.
Todo esse caldeirão cultural, todas essas referências e linguagens eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato, Glauber, Leminski, Waly, Gullar, Hilda Hilst... E é desse quadro geracional (e bem lá atrás,Drummond, Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald e Guimarães Rosa - e principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, além dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse manancial criativo que o poeta consegue desarmar o que nele se encontra envolto, de forma atávica, e reafirmar seus próprios tempo e potência, com o refinamento de sua fala.
Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a palavra e a imagem, ao experimentar os sentidos que lhe chegam, sugando os afluentes existentes nas estruturas tradicionais de nossas artes, e reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de nostalgia e futuro.
“visto uma vaca triste como a tua cara:
estrela cão gatilho morro
a poesia é o salto de uma vara”
De forma particular, o autor parece nos indicar algo que se confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha tênue da poesia clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e tocando, igualmente, o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor e à brutalidade. Cada poema possui sua própria respiração, pausa e pontuação emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito dos prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de encarar a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente imagéticos, entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de descobrir uma poesia a que não se pode ficar indiferente.
“a língua escava entre os dentes
a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica”
Ainda que não pretenda novas experiências formais, o autor consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários enquadramentos linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando falamos de poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de objetividade, e da própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito da desordem, da inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um discurso contrário a certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do livro, algumas impurezas saudáveis.
“te procurei na Ipiranga
não te encontrei na Tiradentes
nas tuas tralhas tuas trilhas
nos trilhos tortos do Brás
fotografei os destroços
na íris do satanás”
SagaraNAgensFulinaímicas nos apresenta uma peça de tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só personagem: o Amor. E o desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande carga lírica, alegórica e, tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal da Paixão, perseguindo a imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são movidos por esse sentimento dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que é muito, como na música de Caetano.
“te amo
e amor não tem nome
pele ou sobrenome
não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus próprios códigos
e segredos”
E indaga e responde:
“até quando esperaria?
até que alguém percebesse
que mesmo matando o amor
o amor não morreria”
Em seu texto, há uma espécie de dança frenética, onde interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar amoroso, pelo encontro dos corpos.
“e para espanto dos decentes
te levo ao ato consagrado
se te despir for só pecado
é só pecar que me interessa”
Dono de uma sonoridade vocabular repleta de aliterações e assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical, refletindo no leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com as palavras, cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu vasto arsenal de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias, das metáforas, dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de poemas de impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza, transforma a dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma poesia elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical - atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.
“quero dizer que ainda é cedo
ainda tenho um samba/enredo
tudo em nós é carnaval”
De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte, as intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens e ao sentido de sacanagens; e às de Mario de Andrade - onde Macunaíma reparte seu teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.
“é língua suja e grossa
visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesa”
Ao seguir de perto o conceito metafórico do processo crítico e cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores, com sua língua literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa poesia catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da homogeneidade de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos com que já nos acostumamos. De acordo com o próprio autor, revelado em uma entrevista, SagaraNAgensFulinaímicas é um pedido de bênção a seus Mestres, imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o fragmento do poema que abre o livro:
“guima meu mestre guima
em mil perdões eu vos peço
por esta obra encarnada
na carne cabra da peste”
E afirma:
“só curto a palavra viva
odeio essa língua morta
poema que presta é linguagem
pratico a SagaraNAgem
no centro da rua torta”
No livro, os poemas se interpenetram, linguisticamente, libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas,num aparente jogo de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se esconde, de acordo com a mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus textos ora afirmam, ora desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos, Raul Seixas, e a sua metamorfose ambulante. Sentimentos contraditórios, como se o autor quisesse, propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos, ambiguamente, rindo de nós, a nos instigar: “Desnudem a minha esfinge!”
“eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta”
Na verdade, sua poesia apresenta vários (re) cortes, várias direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo. Como se o verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa dissipação o transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós.Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou não?
“a carne que me cobre é fraca
a língua que me fala é faca
o olho que me olha vaca
alfa me querendo beta
juro que não sou poeta”
Tantas vezes escatológico e sensual, numa performance textual que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário poético explode em tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas, cuspe, pus, línguas, dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e lençóis, como um paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior, nas ondas de um mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.
Sem falsos pudores, o autor procura, em seu liquidificador de palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com cortes de cinismo e grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na corda-bamba, sem rede de proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades com seus versos de alta voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho ultrapassa os limites das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após o término de sua leitura.
“a carne da palavra
: POESIA
l a v r a q u e s o l e t r o
todo Dia”
A poesia de cunho social é, igualmente, referência obrigatória em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária, marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente, no memorável e premiado O Boi Pintadinho, de 1980. Esses poemas político-sociais, junto ao tema amoroso, também encontramos em outras obras importantes do poeta, como Suor & Cio, de 1985, Couro Cru & Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas com Gosto de JardiNÓpolis & Uma Canção com Sabor de Campos, de 1990, e se inserem em todos os seus livros posteriores, que culminam agora em SagaraNAgensFulinaímicas.
Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São Paulo, Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde tudo sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser reconstruída em poesia.
“ando por são Paulo meio Araraquara
a pele índia do meu corpo
concha de sangue em tua veia
sangrada ao sol na carne clara”
Artur Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar beleza e prazer. Entende que a poesia existe para expressar a condição humana, tocar o coração e a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu interlocutor tenha chances de conhecer-se mais e melhor. Eque só há um meio de o poeta conseguir seu intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem. Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial de seu pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da nossa língua são amor e liberdade.
“a coisa que me habita é pólvora
dinamite em ponto de explosão
o país em que habito é nunca
me verás rendido a normas
ou leis que me impeçam a fala”
SagaraNAgens Fulinaímicas veio confirmar o que os leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador que desafia rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da realidade, onírico e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em permanente ebulição – um texto em contínuo movimento. Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa, delicada, passional, corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária, corrosiva, visceral, abusada, dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do livre desejo e do desejo livre. Nela, não há espaço para o silêncio: é berro, uivo, canto e dor. Pulsão. Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de palavras.
"O Homem com a Flor na Boca" é uma coletânea de poesias que captura a essência da experiência humana através de uma linguagem poética marcante. Escrito pelo talentoso autor Artur Gomes @fulinaima , o livro explora temas universais cativando o leitor com sua sensibilidade e profundidade. As poesias refletem uma jornada emocional envolvente, onde cada verso é uma janela para o coração e a mente do autor, convidando o leitor a se perder nas palavras e encontrar significado em cada linha. Com uma mistura de imagens vívidas, metáforas evocativas e uma linguagem única, "O Homem com a Flor na Boca" é uma obra que ressoa com todos aqueles que buscam conexão e compreensão no mundo ao seu redor.
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