sábado, 6 de abril de 2024

Couro Cru & Carne Viva

Isso é um poema ou uma navalha?

 Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema.  Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever  um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”.  Preste só atenção em Drummond .

 

“Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira”.

 

Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia mais.

 Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.

 Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra;  re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.

 Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o  diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com  a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.

 O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os  poemas navalha de Artur Gomes  certamente não terão piedade de você.

 

Aristides Arthur Soffiati

Campos, agosto de 1987

*

I

O DIA EM QUE MEU CAVALO RESOLVEU PINTAR AS CORES DA BANDEIRA 


a pá/lavra

arma poesia 


terra de santa cruz

 

ao batizarem-te

deram-te o nome:

puta

 

posto que a tua profissão

é abrir-te em camas

dar-te em ferro

                 ouro

                  prata

 

rios peixes minas mata

 

deixar que os abutres

devorem-te na carne

o derradeiro verme 


in(confidência mineira)

 

sal gado mar de fezes  

batendo nas muralhas

do me sangue confidente

 

quem botou o branco

na bandeira de alfenas

só pode ser canallha

 

na certa se esqueceu

das orações dos penitentes

e da corda que estraçalha 

com os culhões de tiradentes 


retórica

 

salve lindo pendão que balança

entre as pernas

abertas da paz

 

sua nobre sifilítica

                  herança

dos rendez-vous

de impérios atrás


 

eco lógica

 

               fosse o brasil

mulher das amazonas

caminhasse passo a passo

disputasse mano a mano

 

guardasse a fauna e a flora

da fome dos tropicanos

ouvisse o lamento dos peixes

jandaias araras  ciganos

nossos indígenas africanos 

 

não estaríamos assim condicionados

aos restos do sub-humano 


terceiro mundo

 

sonho rola no parque

sangue ralo no tanque

 

nada a ver com tipo dark

muito menos com punk

 

meu vício letal é baiafro

com ódio mortal de yanque


sub/VERSÃO

 

só desfraldando

a bandeira tropicalha

é

que a gente avacalha

com as chaves dos mistérios

dessa terra tão servil

 

tirania sacanagem safadeza

 

tudo rima uma beleza

com a pátria/mãe que nus pariu


pátria a(r)mada

 

só me queira assim caçado

mestiço vadio latino

leão feroz cão danada

perturbando o seu destino

 

e só me queira encapetado

profanando àqueles hinos

malando moleque safado

depravando os seus meninos

 

só me queria enfeitiçado

veloz macio felino

em pelo nu depravado

em sua cama sol a pino

 

e só me queira desalmado

cão algoz e assassino

duplamente descarado

quando escrevo e não assino 


relatório

 

I

na sala ficaram cacos de pratos

espalhados pelo chão pedaços do corpo retidos entre o corredor após o interrogatório um cheiro de pólvora e mijo misturados a dois ou três dias sem banho depois de feito sexo

só o fogo da verdade exalando odor e raiva quando em verde conspiravam contra nós 

em são cristóvão o gasômetro vomitava um gás venoso nos pulmões já cancerados nos quartéis da cavalaria 


 

II

eu me lembro

o sentimento era náuseas nojo asco

quando as botas do carrasco

bateram nos meus ombros com os cascos

jamais me esqueci o nome do bandido escondido atrás dos tanques

e

se chamavam

                   dragões da independência

e a gente ali na inocência

comendo estrumes  engolindo em seco as feridas provocadas por esporas

aguentando o coice o cuspe

e

    a própria ira

                          dos animais de fardas

batendo patas sobre nós 


III

com a carne em postas sobre a mesa

o couro cru o coração em desespero

o sangue fluindo pelos poros pelos pelos

 

eu faço aqui

meditações sobre o presente

re cria ando

                      meu futuro

tentando só/erguer

as condições pra ser humano

visto que tornou-se urbano

e re par tiu

                 se

em mil pedaços

visto que do sobre-humano

restou cabeça pés e braços 


pós: ANT:PÓS

 

enquanto nós poetas

tentamos mostrar

a burguesia lá

                     do alto

qual de nós

                     é mais concreto

os profetas do planalto

vão fudendo o povo inteiro

com um pau

bem grosso e reto

- e a poesia?

 

continua não passando

de um simples objeto


art pop

 

macunaíma

ilumina o lobisomem

na selva de new York

 

o rato roeu ea roupa

do gênio da art pop

 

nosso samba popular

não precisa ser estar

cantando rock

 

geleia geral

 

a coisa por aqui

não mudou nada

 

embora sejam outras

siglas no emblema

 

espada continua a ser espada

poema continua a ser poema

 

pessoa

 

não tenho pretensões

de ser moderno

nem escrevo poesia

pensando em ser eterno

 

veja bem na minha língua

as labaredas do inferno

e só use o meu poema

com a força de quem xinga 



II

rente a pele

contra o muro

eu te grafito no escuro

 

quero um poema que revele         poesia em sua pele  


genital

 

pasto no cosmo

a soja secular de Jardinópolis

onde os discos-voadores

sobrevoam meu nariz

na cara das metrópólis

 

no centro ao sul

os cemitérios

possuem mais mistérios

que a nossa vã filosofia

 

tem um animal de vagina espacial

na poesia

                     &

                     um grande pênis roxo

milenar

              feito aspiral em círculo

preparando imenso orgasmo

pra festejar o fim do século


BR – 101

 

ah! meu amor

não te esqueci

ainda procriando no meu corpo

os micróbios do teu sangue

                                       enlouqueci

 

overdose nu vermelho

 

retesar as cores

e os músculos

com os dedos agarrados no pincel

 

se faltar carne

pra roçar os óvulos

a gente jorra tinta no papel 


"O Homem com a Flor na Boca" é uma coletânea de poesias que captura a essência da experiência humana através de uma linguagem poética marcante. Escrito pelo talentoso autor Artur Gomes @fulinaima , o livro explora temas universais cativando o leitor com sua sensibilidade e profundidade. As poesias refletem uma jornada emocional envolvente, onde cada verso é uma janela para o coração e a mente do autor, convidando o leitor a se perder nas palavras e encontrar significado em cada linha. Com uma mistura de imagens vívidas, metáforas evocativas e uma linguagem única, "O Homem com a Flor na Boca" é uma obra que ressoa com todos aqueles que buscam conexão e compreensão no mundo ao seu redor.

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