sábado, 6 de abril de 2024

Artur Gomes - O Homem Com A Flor Na Boca

 Juras secretas de um trovador contemporâneo

por Adriano Moura

 “Só uma palavra me devora / Aquela que meu coração não diz”.

 Esses versos de Jura secreta, canção de autoria da compositora brasileira Sueli Costa e Abel Silva, conhecida por grande parte do público pela passionalidade interpretativa da cantora Simone, pluraliza-se e faz emergir Juras Secretas, décimo oitavo livro do poeta Artur Gomes.

 Não que haja intertextualidade explícita entre a canção e os poemas do livro, mas denota o intertexto como uma das principais marcas do poeta, recurso presente em seus livros anteriores.

Em SagaraNagens Fulinaímicas (2015), já se percebia um Artur Gomes um pouco distinto da ferocidade de crítica política predominante, por exemplo, em Couro cru & Carne Viva (1987). Em Juras secretas, o poeta assume de vez sua faceta lírica, e é essa que pontua as cem “juras” que preenchem o miolo do livro.

 

Jura secreta 45

 

por enquanto

vou te amar assim em segredo

como se o sagrado fosse

o maior dos pecados originais

e minha língua fosse

só furor dos Canibais

 

E é com furor canibalesco que se nota, na tessitura poética de muitos versos, o poeta que se dedica também à leitura da literatura e de outras artes. Antropofágico, herdeiro de Oswald Andrade e do Tropicalismo, a língua do poeta devora tudo que o coração não diz para permitir que a poesia o diga.

Hilda Hilst, Portinari, Glauber Rocha, são signos que denotam o repertório de um leitor-espectador de várias linguagens e que não esconde essas influências. Porém sua poesia não é enciclopédica. As alusões promovem efeitos sonoros e imagéticos que contribuem para o desenvolvimento de uma estilística pessoal e funcional.

 

Jura secreta 13

 

quantas marés endoidecemos

e aramaico permaneço doido e lírico

em tudo mais que me negasse

flor de lótus flor de cactos flor de lírios

ou mesmo sexo sendo flor ou faca fosse

Hilda Hilst quando então se me amasse

ardendo em nós salgado mar e Olga risse

olhando em nós flechas de fogo se existisse

por onde quer que eu te cantasse ou Amavisse

 

Artur Gomes é um dos poucos poetas que mantém viva a tradição da oralidade. Participa de vários encontros Brasil afora recitando seus versos como um trovador contemporâneo. Nota-se, na estrutura musical de sua poesia e nas imagens que cria, uma obra que se materializa por completo quando dita em voz alta. Mas mesmo no silêncio do quarto, da sala, da praia ou no barulho do carro, trem ou metrô; a poesia de Juras Secretas oferece viagens estéticas aos que sabem que a poesia não está morta como andam pregando por aí.

 

Jura secreta 43

 

com os seus dentes de concreto

São Paulo é quem me devora

e selvagem devolvo a dentada

na carne da rua Aurora

 

Adriano Carlos Moura

Mestre em Cognição e Linguagem (Uenf).

Professor de Literatura do IFF –

Doutor em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora-MG

foto: Alice Maria Diniz




poema 19

 

a língua hoje passeia

pelos martírios de florbela

em tudo que ela não disse

ou mesmo exposto não revela

pelas janelas do corpo

por todas dores prazeres

no que ficou por dizeres

no silêncio quando cala

por tudo que ainda não cabe

na sensualidade da fala


* 

 

tantos pratos

e talheres sobre a mesa

              onde tudo cabe


                                                *

 desde que não seja lama

desde que não seja Vale


                                                         *

 

holocausto

 

quem se alimenta

dessa dor

desse horror

desse holocausto

 

desse país em ruínas

da exploração dessas minas

defloração desse cabaço

 

quem avaliza o des(governo

simboliza esse fracasso? 

 

  

metafórica dialética

 

quantas teorias terei

para escrever o que falo?

 

quantos sapatos ainda apertam

os calcanhares do meu calo?

 

me esqueço as vezes sobre a mesa

no jantar ou no almoço

garfos facas pratos talheres

me perco sempre em  incertezas

 

se são onças leoas leopardos tigresas

e não saber  se amanhã

vão morrer quantas mulheres

                nas fardas da realeza


                                              * 

 

 nessa tragédia social

os 270 mortos

em Brumadinho

 mostram que

nesse hospício

 há muita lama

no meio do caminho

 

 

fake book

 

o face detonou

minha família inteira

e lá se foram

os meus amores carnavais

 

e agora o que é que eu faço

sem as Anas sem as Eras

 

as Cristinas Isadoras Micaelas

Vênus Afrodites todas elas

os bem-me-quer dos meu aceiros

                       e dos meus canaviais

 

essa rede assim fascista

 não comporta

os meus poemas canibais

 

 crise

 

diante dessa crise tanta

não adianta

        fazer o que não deve

 

no improviso do repente

poeta inteligente

não inventa:     escreve

 

 ando

tão tenso

nesse tempo

           estático

que não consigo

escrever tudo que penso

 

 diagnóstico urológico


segundo o urologista

 o sangue na urina

transbordou da próstata

sem passar pela bexiga

                     direto na ureta

 

e se não fosse tanta dor

juro quem sabe um dia

eu seria um bom poeta

 

 

 FULINAIMAGEM

 

mais breve que

                      ponteiros de relógios

o amor roeu os ossos

comeu a cartilagem

                  da linguagem dos negócios

 

minha vida de cachorro

não está pra peixe inteligente

tenho chorado

                         as mortes que não tive

                         o morto que ainda vive

 

 tem gente que aterroriza

minha pobre paciência

                        tamanha a indecência

dos seus discursos de bestas

           da sua língua de bosta

 

 

FULINAIMAGEM 3

Overdose Nu Vermelho revisitada*

 

na linguagem dos 80

o corpo não precisava

de puteiro  prostíbulo    bordel

 

faltasse carne

pra roçar os óvulos

 a língua jorrava tinta

                        no papel

  *Overdose Nu Vermelho – poema do livro Couro Cru & Carne Viva - 1987

 

 FULINAIMAGEM 4

 

muitas vezes a língua pulsa pula para o outro lado do muro  outras  vezes a língua pira punk nesses tempos obscuros às vezes a língua Dada vai rolando dados nesse jogo duro muitas vezes a língua dark jorra luz nas trevas desse templo escuro

 

 FULINAIMAGEM 5

 

nessa linguagem de palavras ostras

marisco em minha língua

                                espuma

escorre entre tuas coxas

 o mel da palavra

                                    pluma

 gosma dessa baba enguia

feito fogo queima  o sal

 dessa água impune fosse

                      espada peixe

       flecha ao sol no meio dia

 

 

 FULINAIMAGEM 6

 

minha língua baudelérica

faca de dois gumes na métrica

 morde o outro gumes na delírica

 a minha língua só fonética

                                  mallarmaica

                                      brazilírica.

 

minha língua pós andrátrica

drummundana cibernética

 afrodite na genética

 mata o verme da quadrilha

 bomba de nêutron energética

               assassígna de brazilha

 

 

FULINAIMAGEM 7

 

língua nova não tem dono pode estar em qualquer boca  na minha na tua na dele na dela   morde portas e janelas como se algum dente fosse língua nova está na casa na areia na argila nesse barro chão batido nas paredes de tijolos nos telhados de algum palácio assombradado  ou mesmo  fosso língua nova está no corpo está na carne está no sangue está nos ossos  língua nova é quando posso catar um caranguejo pra escavar um novo poço

 

 

FULINAIMAGEM 8

 

a língua cospe da boca  essa saliva sangue escarro do beijo  que me foi roubado de outras bocas bêbadas desses dias inglórios descem cascatas de trovões anunciam  tempestades o sal amargo de algum ventre exposto as sevícias da barbárie nas ruínas dos castelos entulhos dos palácios esqueletos carcomidos por longos séculos de ócio

 

 FULINAIMAGEM 9

 

rasgo o véu na membrana em tua íris espinho minha língua cavalo no galope nesse pasto de quimeras  era foice faca e vieste de outra Hera  fosse febre fértil  fumo nas artérias fosse sangue venenoso em minhas veias óxidas rios de carbono e chumbo lama mineral nos restos dos impérios  que um rei tirano trouxe

 

 FULINAIMAGEM 10

 

a voragem da linguagem me deixou vertigem nas costas da janela estela foi despindo as coxas me beijando os músculos com os seus dedos de moça nas entre linhas do meu terno pra que a língua ardesse como pimenta azeite  no fausto fogo desse inferno

 

 FULINAIMAGEM 11

 

pessoas que me comovem são aquelas que vivem ou viveram com os seus fios elétricos ligados cuspindo seus relâmpagos suas trovoadas sobre as nossas tempestades. sou fanático sim por blues samba e reggae. faço as minhas escolhas independente do meu coração partido e sigo vivo com Os Dentes Cravados na Memória para nunca jamais esquecê-las como a carne que comia -  pessoas que me comovem rasgam o peito e                                      deixam sangrar    porno grafia 

 

 

 poética 100

 

desconstruir os objetivos fascistas

:

eis a questão

 

 diária missão

de cada um de nós

                      poetas

quando sabemos que

                                linha torta

                               é muito mais

que um poema em linha reta

 

 

 FULINAIMAGEM 12

 

quando zeus

me apresentou o raio

umbanda venceu demanda

conheci um cão azul

que me guarda

               na varanda

 

 

o cão azul

para Rodrigo Sousa Leão
                         in memória

 

ele cantava
como um pássaro engaiolado
as 4 da madrugada
no seu apartamento


e me perguntou
se eu tinha gostado
da garganta da serpente


e se era também azul
o cachorro que estava ao meu lado
invisível para mim
naquele momento

 

 o amor

é um barco bêbado

depois da chuva

naufragado frente ao cais

                        em Ubatuba

 

 ancestral

 

há muito tempo não recebo cartas de ninguém mas não rezo padre nossos simplesmente para dizer amém                 já fui católico rezei terços ladainhas acompanhei a procissão dos afogados na tapera para soletrar a palavra ca co man ga e entender que o barro da cerâmica trago grudado na retina - meu batismo de fogo foi numa santa cecília entre víboras e serpentes  mordi a hóstia do padre - sua saia preta -  me levou a pânicos e pesadelos - de sonhar com  juízes que hoje posso saber o que são -  minha África são os olhos negros de Madame Satã - na língua tenho uma sede felina  na carne essa  fome ancestral pagã – de ser um homem         comum         filho de Ogum com Iansã

 

 

 cato caco de vidro nos azuis

                                             

cato cacos de vidros  nos azuis dos alumínios lâminas  de fogo azulejos nesse olho d'água  algas e pedras nesse tempo ostras  antes das horas que o dia tarda e os tiranos engatilhem  seu torpor maligno - cato caco de vidros nessa areia carma e provo o sal o sangue o sexo a saliva o cio dessas horas tontas - são tantas horas perdidas outras desencontradas  na areia da praia no rabo da arraia na ponta da lua branca nas espumas nos espermas  que não fizeram filhos nas pernas nas coxas no litoral dos ânus - essas horas que se perderam em ondas elétricas que se ejaculou nos ventos nas marés do zeus me livre onde netuno não aporta mais os seus navios

 

 com os dentes

cravados na memória

 

em são sebastião do sacramento suas coxas em  movimentos me lembravam  peixes sagrados nos mares que minas não tem - mãos por teus montes claros provocavam  marés - atropelos -passeios de língua entre pelos também em outras partes lábios de mel sal abissal um peixe espada - prometeus -  desejos despindo teus seios teus dentes cravados nos meus e a lua por sobre a capela a luz em tua alma - donzela -  afrodite  - uma  caça indefesa - presa - em minhas unhas de zeus

 

 

  ainda que eu fosse

 

ainda que eu fosse peixe
ainda que fosse pedra
maré de maio não medra
maré de junho não fedra


a senhora das tempestades
vestiu meu vestido de chuva
vestiu minha blusa de vinho

nas festas das horas marcadas


a senhora das trovoadas
despiu minha roupa de sexta
despiu minhas roupas de quarta
deixou-me com saldo das festas
        com gosto de encruzilhadas

 

                                       

a mulher dos sonhos
será que Freud explica?

 

ontem sonhei com a mulher dos sonhos não era minha mas procurei saber quem era encontrei o endereço não estava -  a governanta me falou que estava em búzios - não a vi mas ouvi uma voz e me dizia: - todo escrito deve ser falado todo livro deve ser bem lido e quem fala deve ser sempre escutado - o telefone toca não atendo nem sei quem está do outro lado - deu pra ver dois olhos nos búzios na areia ainda molhada pela espuma das ondas e o vai e vem me deu um susto era ela toda de branco lenço azul nos cabelos 3 contas de vidros nas mãos quando percebi quem era acordei do outro lado da praia ela gritou meu nome – perguntei quem era – ela me disse o sobrenome – não decifrei o sonho – mas perguntei se freud explica – ela me deu um beijo na boca.

 

 

 mallarmè me deu o toque

para Filipe Barbosa Buchaul Gomes

 

poesia é pau é pedra

palavra sem retoque

quem conhece o lance de dados 

não joga com dado lance

 

não troca flecha por lança

nem armadura por bodoque

 

quem sabe que  vida é fedra

não teme a hora do toque

nem quanto custa ler Roberto Piva

e ouvir Fil Buc com a sua  banda de Rock

 

                                                        

 

escridura

 

esse poema absurdo

direto no ouvido do surdo

escridura nos olhos dela

ela bem sabe o que desejo

ela bem sabe o que espero

tem canivete no sangue

tem um alfinete entre dentes

a faca que corta a navalha

sangrou as tripas no ventre

o beijo quando for que seja
de língua lambendo a carne quente

 

 

 ela já foi meu grande amor

chegou na trovoada

                        feito ventania

 

            foi como tempestade

morreu na calmaria


cato cacos de azuis

nos alumínios
em cada mínimo
                que vejo
azulejo

 

 

 um poema mallarmaico

satírico freudelírico aramaico

onde voz nenhuma me alcance

um lance de dedos nos dados

uns dados de dedos no lance 

 

 onde vais cinzia farina

toda vestida de letras

como quem grafita na areia

esse seu espelho d´água

à beira mar na lua cheia

 

 nonada no meu prato

na hora do meu  almoço

nonada no meu prato

na hora do  meu jantar

 

nesse país a fome é tanta

que comeram meu calcanhar

 

 

 no lance de tantos dedos

no jogo de tantos dados
meus 5 sentidos mordem

 signos

                               sem decifrar   significados

 

se continuarmos

a dar  queijo para os ratos

eles continuarão

a roer nossos sapatos 

 

 

grafitemas e figuralidades

 

estou escrevendo um mini conto um grafitema umas figuralidades não é coisa de cinema a mais nua e crua realidade certa noite ela me veio não era sonho era uma noite de chuva com seus dois grandes olhos e mãos tão pequenas como quem grafita na areia um espelho d´água à beira mar na lua cheia  vinha vestida de letras como o som da flauta de bambu dentro do fonema veio de longe da outra margem do rio dentro da tapera o cauim me trouxe na tigela bebi como índio na hora que vê  nascer o filho beijei teus cabelos de milho e ela me         perguntou quem eu   era 

 

 

 a  transa as tralhas os truques 

 

 cai o pano

nenhuma surpresa

pratos vazios sobre a mesa

 

 nessa pedra me abstenho

nessa pedra me abstrato

não concreto o que não tenho

nem des(calço) o teu sapato

 

 o cateto  na hipotenusa

a hipotenusa no cateto

o som dessa flauta me parece

sinfonia do Hermeto 


essa minha obsessão

por beleza na ternura

abstrata no concreto

vem da plasticidade

de uma nova arquitetura

 

 o amor

esse bandido
levou-me os fios de cabelo
roubou todos meus  sonhos

e transformou em pesadelos 

 

                                                                                                             Poema 8

 

o dia que não te vi

foi baudelérico

a noite que não beijei sagaranagem

quando vi e não me viu não entendi
porque o  amor não foi selvagem

 

quando beijei e não sentiu
só mallarmélico


para escrever o que ainda
está por vir quando delírico


 

   última ceia

 

do peixe vamos comer

somente espinha

na rapadura com farinha

 

 

 vertigem 12

 

o barro do valão que os pés pisaram impregnou o sangue transpirou  nos poros o limo embaixo das unhas lembra-me o lugar de onde vim aquele sertão alado como uma ilha de creta montando alazão enluarado pre-destinado a ser poeta não tracei a linha reta já nasci um anjo torto nada em mim se concreta no meu sonho – desconforto -

 

tudo em mim é impossível até mesmo imprevisível muito mais que inalcançável não gosto de automóvel muito menos televisão cresci dentro do mato conheci olho de cobra tigre  felinni felino   moleque malandro gato  com dentes afiados de cão

 

 cada um com seus desejos

e o amor em desalinho

eu tinha fome de beijos

ela tinha sede de vinhos

 

 pandeprosa

para Divanize Carbonieri

 

 poesia poderosa muitas vezes pandeprosa

muitas vozes vozes muitas

muitas outras línguas claras

mesmo em noites obscuras

o abstrato se depura

em raras vozes vozes raras

ave palavra criaturas

poesia é coisa cara

 

 

 roteiro para um poema épico

 

estou liquidi-ficando com a fome dos     desejos que se foram antes

 

itinerário

 

esse poema contém vírus desejos pecados rasgados com Stella em São Conrado subindo ao Cristo Redentor do morro do Corcovado a pedra do Arpoador

poesia pecados da carne sem limites

feito lâmina a luz do sol  penetra em minha carne água sol sal céu mar limão alho mel de cana azeite suor pimenta atum sardinha gema no poema inventa cama em chamas acredite  receita infalível para o sexo dinamites

 

 nesse mar de espuma voa leve pluma nos teus olhos d´água travesso desde menino pelo destino em ser felino por travessura e desatino nas entre linhas entre minhas vinhas uvas passas ao rum línguas de vinho

 

Po Ema

 

se penso resisto mesmo tenso insisto atravesso o tempo como quem partia nesse azul de sal num mar de algaravias como quem se esquece numa quinta feira  grafitando ideias com um giz de cera em um mar de algas em tua pele pera na corte dos fellinis  o mais felino quebra as regras da estética desde menino zomba da rima rica na poética por ironia do destino

a solidão berra entre  céu e  terra

pala(r)vras de fogo em cartas incendiárias queimaram horas e dias nem sei mais o que pensam as 7 medusas do monstro encontradas no manguezal

 

tupi or not tupi

 

Itapetininga pedra de sal no mar de Pirapitanga  tem gente que de repente deixou de ser ou já não era¿  quem disse que amor é santo¿ nem tudo que poderia te dizer escrevo nem sei mais quem habita as costas do teu litoral e quantas algas já contei nas asas do temporal imagens em chamas vieram nas entre linhas rasgando as entre minhas esporas palavras dela

quem disse que desejo não cabe no poema?

 meu objeto do desejo tem nos olhos cor de algas e algum peixe que se foi sem teatro a alma   não respira perde-se a vida Serafim Ponte Grande ainda me aponta uma ponte algumas trilhas tenho uma amiga que ainda não sabe quanto é musa - nas Juras Secretas para ela muito já foi escrito e muito mais ainda  tenho   a escrever até rasgar as entranhas nas armadilhas do ser  estou desde dezembro sem poder fazer o que gosto e isso me deixa em desgosto a vida sem tira-gosto vida de gado:

 

 depois da engorda o matadouro  céus de fogo já rompendo as madrugadas  em noites claras  do  sertão por serTão iluminadas trago essas noites dentro das cercas e arame farpados  os currais dos campos cerrados meu mato grosso de sangue vermelho fincou na cancela imagem do corpo estirado depois do tiro no peito na fazenda encharcada abandonada  trago essas noite no tempo  da cacomanga assustado um menino que aos 7 anos viu a morte de perto por dentro de uma garrucha  do seu tio ali suicidado

 

hoje nem sei se escrevo

poema em linha reta

    ou se embarco direto

para ilha curva de Creta

 

dada ista dada

 

 ista era uma menina que me queria quântico metafísico se o amor não fosse em carne até mesmo osso com o estigma da crueldade presente em cada ato quando a pimenta do reino ardesse em vossa língua ou queimasse à flor da pele o céu da boca e a carne nua e crua exposta ao sol ao vento fosse apenas um feixe de lenha a ser levado por qualquer lenhador que ousasse invadir seu mato dentro

 ista me queria dentro de um versículo bíblico mastigando a pedra até o pó a memória é uma língua suja que lambe a carne das palavras morde com seus dentes até sangrar melado dos canaviais dessa lavoura arcaica que hoje cultivo em meu quintal tem dias que a ossatura no corpo não é mais que uma carcaça segurando a capsula da pele aqui de fora esse corpo que carrega 288 estações primaveras verões outonos invernos à beira de um abismo sem luz no fim do túnel pra clarear  meu modernismo 

 

                         

nonada

:

o homem com a flor na boca

 

 vida toda linguagem

língua o trem da viagem

 

pinda o nome

na terceira margem do rio orucun

 

o mato grosso

me acertava

com algo

que ainda não conhecia

 

 flecha de fogo certeira

Divanize me alertava

e o coração estremecia

 

os dias selvagens te ensinam

Aricy de minas

refletia

 

o amor no cerrado sangrava

como um beijo no asfalto

na boca de quem comia

 

o barco deslizava nas águas do paraguai

        em direção ao futuro que não vinha

 

 o homem com a flor na boca

atravessou o pantanal

com o seu poema pássaro

 

ave palavra profana

cabala que voz fazia

 

moro no teu mato dentro

não gosto de estar por fora

tudo que me pintar eu invento

como beijo no teu corpo agora

 

de suas janelas ela me olhava

como alguém que ainda não me percebia

o barco seguia seu fluxo

o sangue na veia era o que mais me ardia

 

 ela só tinha nos olhos

animais aquáticos

os pássaros vez em quando

pousavam em suas janelas

 

minha língua lendo Ivo

me revelava o tempo e a ostra

 

campos era uma cidade

noblesse uma livraria

nas veias da mocidade

arte era o que existia

 

 a bruxa dos cacos de cogumelos azuis

me confessou rasgando um blues

com os gumes da carnavalha

e as lâminas de um canivete

prometeu esquartejar os vermes

na próxima sexta vinte e sete

 

 na noite consagrada ao desfile

toda cidade enfeitada

 para um novo  ritual

amanheceu a flor do pântano

e era domingo de carnaval

 

 colorau o nome  do  vermelho

com que batizei o festival

 

no nine nem

língua toda viagem

linguagem que me convém

 

em meu estado de surto

Sartre de  poesia

mama áfrica

a minha mãe já me dizia

ferramenta de barbeiro é carnavalha

a do poeta deve ser filosofia

 

 retorno da viagem o hiato (entre parênteses) porto viejo canavarro onde o barro da carne era mais quente carnaval com fogos de artifícios um ritual em algum navio alguma nave o pantanal o mato grosso uma viagem a travessia

 cada escola de samba que passava era  um  grito de nostalgia o pelo na pele arrepiava oswaldívia me visitava e quem disse que me alivia o corpo em transe delira e o povo de lá  sucupira  entre o pantanal de  Corumbá e a fronteira  na Bolívia meu corpo todo à deriva no mato grosso do sul no barco só tripulantes com seus turbantes azuis lábios vermelhos das tintas extraídas dos urucuns onde índios mascam contentes as suas folhas de coca e celebram seu presidente 

 Evo Morales  nativo no fogo daquela gente num ritual transitivo  me leva a muitas cervejas do outra lado a fronteira  de santa cruz de lá sierra  a barra do sol cana brava  usina de sal minha terra onde Stella   me esnobava mas bom cabrito não berra atravessei a fronteira  fui dançar  com Gabriela uma índia  boliviana  que me agarrou pelas costelas e me amarrou num trava língua como os meus  tempos na tapera 



                                         não é fácil

uma linguagem fácil

complexa ou  metafórica

no ritmo de uma roda gigante

que a tua  língua não controla

 

 

 tragédia infame

 

empresto minha voz aos deserdados os desnutridosos que não tem pela manhã café com pão e sobre a mesa no almoço nem mesa nem carne seca com farinha espinha de peixe na garganta é o que sobrou pra curuminha

empresto meu corpo minha voz a esses personagens os que tem sede  os que tem  fome ou os que morrem assassinados nos guetos  nos campos nas cidades  por balas de fuzil  está fudido esse  brasil entregue as traças e só  me resta exterminar o nome o sobrenome o apelido do causador dessa desgraça

 

 O homem com a flor na boca

 

cada boca tem sua língua

cada língua tem seu vício

cada vício seu desejo

metáfora de fogo quem sabe

ou flor do desejo quem dera

o desejo da língua é o beijo

vermelha  flor de aquarela

a rosa quem me deu foi ela

 nos olhos da flor  o  que sinto

no coração absinto o que vejo

e sem  nenhum sacrifício

amar de forma indireta

sem pensar  fim ou início

de alguma jura secreta

a seta no arco é a flecha

o alvo da flecha é a seta

            a flor na boca é desejo

           o beijo na flor é a meta


                               *

 

                                      minha escrita

grita

muitas vezes

palavras soltas ao vento

invento


*

 cana caiana

 

da cana

o açúcar

o melado

a rapa dura

o chuvisco da gema do ovo

e a minha língua sacana

atenta a tudo que faço

falando a língua do povo

moído como bagaço


*

 discípulo de Rimbaud

 

minha tv pifou

nem tenho ido ao cinema

meu filme está  na carne da palavra

esse poema é trágico

me lembra infância lá na cacomanga

televisão nunca tivemos

era rádio de pilha depois de bateria

meu pai criava porcos

para vender na primavera

e complementar o seu salário

que nem o mínimo era

carteira de trabalho nunca teve

como administrador de uma fazenda

 com mais de 1000 alqueires de terra

com produção agropecuária

canavieira e cerâmica industrial

esse é um poema em linha reta

nem sei por quê e para que

me tornei poeta discípulo de Rimbaud

talvez só para escrever

que no Brasil mesmo depois da Abolição

Escravidão nunca terminou


*

 

Beatriz – A Morta

Oswald de Andrade Re-Visitado

como pedra me olhas
como fedra te vejo
vestida de carne nua
a língua na maçã navalha
tua alma transparente crua
o olho por detrás da porta
poema com pavio aceso
quando Oswald pariu A Morta
tinha os dentes
nos teus olhos preso


a tarde arde como gengibre na carne da boca faz tempo não pedalo pelo litoral com a língua alvoroçada na espuma das marés em guaxindiba sempre encontro motivo para os dentes lábios e dedos carne de caranguejo no meio do beijo tem uma mulher de Itaocara passeando por aqui saudades da minha amiga de Recife e da sua filha em Rio das Ostras onde vaza sob meus pés o poema inacabado agora me vens de Salvador todo desejo toda fúria incontrolável como cavalo selvagem que se         desprendeu da cela


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